segunda-feira, 21 de novembro de 2011

tinha um facão no meio do caminho, no meio do caminho tinha um guarani

Então eu me lembrei de como foi difícil fazer aquela edição nº 69 do Projétil. Não porque me deixaram ser editora, nem porque era fechamento de semestre, mas porque nós (alguns de nós) queríamos nadar contra a corrente. Nós queríamos provar pra deus e o mundo que era possível falar positivamente sobre índio. Que não precisava ser morte, desnutrição, assassinato, suicídio, conflitos por terras. E como não poderíamos ignorar a existência de todos esses aspectos negativos, dividimos o jornal ao meio. O 69 ajudou, metade do jornal deveria ser virada de cabeça para baixo pra poder ser lida normalmente. Eu fazia questão de escrever na parte boa. Acabei ficando com duas matérias positivas e uma negativa.
O difícil foi educar a paixão, encontrar muitos argumentos que valorizassem a cultura indígena, que explicassem de maneira racional a pauta. A notícia não poderia ser escrita apenas porque algum dos repórteres tinha sentimento pelo assunto. Nós encontramos os argumentos, enfiamos como pudemos dentro dos valores notícias que a faculdade nos ensinou. Mas no meio do caminho tinha um facão.
Ademir Romeiro era um dos personagens do nosso jornal. Aos 19 anos, ele era um dos melhores alunos do curso de cinema que o Pontão de Cultura Guaicuru realizou no ano passado. Cursava o segundo ano de Matemática da UEMS de Amambai. A Camila, uma de nossas repórteres, fazia o curso do Pontão junto com Ademir. Eram amigos. E agora tudo quanto for escrito sobre ele deverá ser no passado. Ademir já não filma “com muito respeito a imagem das pessoas”, não toma coca-cola nem respira. Sua vida foi tirada com um facão enquanto ele defendia um amigo. Eu estava ao lado da Camila quando ela recebeu a notícia. Eu senti que, mais do que uma fonte, ela perdia um amigo.
Mas que diabos! Justo uma das flores que emprestaria seu perfume pro lado bonito e otimista do jornal! Justo um dos cineastas mais talentosos! Nós, acadêmicos, lutando pra provar pro editor de rural do Correio do Estado, Maurício Hugo, que ele estava errado quando disse que “só tem coisa ruim pra falar de índio, por isso que a gente nem coloca muito no jornal”, e uma paulada dessa nos acerta.
O que eu quero dizer com isso tudo é que depois do Ademir, depois da minha visita de três dias na aldeia Bororó, depois desse jornal e dessa ironia do destino, cada índio que morre aqui no estado é um amigo meu. Pelo descaso, pela falta de vontade do poder público em resolver, pela irresponsabilidade da imprensa. Os jornalistas, coitados, se habituam tanto a dar certo tipo de notícias que às vezes parece que não percebem que estão falando de seres humanos. Hoje, em um banca de um TCC que falava sobre a violência doméstica, uma das autoras deixou escapar que depois de algumas entrevistas ela já não se surpreendia com os casos, ela havia se acostumado. “Fulana apanhou do marido, está com o braço quebrado e três pinos, só isso”. Só isso. Ela só apanhou um pouquinho. E o que são três pinos, não é mesmo, um bracinho quebrado? Vamos superar isso minha gente.
Eu não consigo pensar assim. Ainda não. E talvez por isso eu ainda vou sofrer e apanhar muito do jornalismo. Eu não vou me habituar com a violência contra qualquer minoria. Não vou achar normal uma mulher apanhar ou sofrer violência psicológica, não vou achar normal um índio que se suicidou ou foi assassinado.
Essa história toda do Nísio me deixa com náuseas. Quase consigo imaginar os jornalistas apenas mudando o nome do assassinado e algumas palavras de matérias antigas, com uma frieza, com uma mecanicidade. E aí eu penso no filho dele, penso em todas as pessoas que o tinham como guia e como exemplo, como força, como defensor, como amigo. Parece que depois de algum tempo de profissão a gente tem que deixar de reparar na humanidade.  Eu não quero que o Nísio seja apenas mais um nas estatísticas. Como foi o Ademir, como foi a Lurdivane, e tantos outros (Marçal, Daniel, Sidney, Cário, Djalma, Celso, Andilo, Jeremias, Geraldo, Catalino, Jorge, Antônio...). Mas não sei o que EU posso fazer pra que não seja. Por enquanto eu só desabafo mimimi. E aceito sugestões.
(abra a imagem em uma nova guia e dê zoom)

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